Tuesday, October 16, 2007

SOB O CÉU DE LORCA

Para encontrar um pouco de calor neste dia em que os vidros da janela me amanheceram salpicados de diamantes, me agarrei aos poemas de García Lorca, espalhei minha infância pelo apartamento, e caminhei descalc,o no quintal de minha casa sentindo o cheiro de mangas e cajus, mas o chão estava gelado e tive que colocar minha meias, e a música de tom waits me falava de uma garota triste e solitária com aquela voz rouca de álcool e morte, e escrevo tomando meu yogurt com maçãs e peras que eu mesmo colhi em nosso jardim, e nada disso me é familiar, e nada disso tem o cheiro de minha infância,exceto esse gosto de solidão e melancolia que sempre esteve comigo, as vezes até no dia mais ensolarado, quando subia na casa da árvore e ficava por lá deitado encolhido esperando que algum coleguinha da vizinhança viesse me aquecer com fantasias cheias de calor, mas eles quase nunca vinham, e ficava eu, e a sombra das nuvens que aparecíam deixando o quintal escuro e cheio de fantasmas e com os gritos de meu pai soando altos e constantes, e a eternidade vulnerável desta fotografia me aproxima ainda mais de meu companheiro Lorca, nós dois carregamos mais fantasmas que qualquer sobrevivente de qualquer guerra, pois nossa batalha arrasta multidões de sofredores na alma que passaram por nossas vidas num mínimo instante e nos sugaram palavras, e sorrisos e nossa generosidade de abrir-se tão rápido e espalhar segredos e respostas para qualquer desconhecido, e caminhar lado a lado descobrindo belezas ocultas, apontando mistérios e abrindo horizontes, como este que abre-se agora me invadindo com um sol que tenta me tirar daqui nestes raros momentos de ternura em minha escrita companheira de todas as tristezas, logo agora que a chuva me trazia tantas inspirações, não quero sair, e vou molhar os vidros da janela com minhas lágrimas, e manchar de sangue minhas lembranças de frutas apodrecidas pelo quintal, pois aqui como em qualquer lugar, os dias seguem cheios de fantasmas, e eles são tão velhos, atravessam todos os séculos assassinando poetas indefesos, tanto como os daqui que se atiraram em mares congelados do alto das torres dos castelos, como os que encontrei em Barcelona, buscando por Lorca pelas esquinas sem nunca encontrar nem resquícios de sua poesia, e assistindo o desfile dos vagabundos e prostitutas e bêbados por todas as ruas por onde um dia caminharam artistas geniais que escreveram coisas incríveis e pintaram e ergueram prédios alheios a este futuro de fome e gente desesperançada, Gaudí, suas sacadas estão infestadas de turistas que não compartilham teus sonhos de tanta beleza construída de pedras e vento, Dalí, teus peixes voadores e criaturas fantásticas estão trancados em museus que cheiram a velharias, enquanto o lixo se espalha e os mendigos pedem esmolas do lado de fora, Lorca, os artistas de La Rambla estão mudos, são estátuas que movem-se por uma mísera moeda que não desperta uma única palavra de misericórdia que seja, e são tão poucas migalhas, porque estão todos tão pobres, porque foram assaltados por um dos milhões de ratos que espalham-se por esta Barcelona moribunda, Buñel, as formigas invadiram os cerébros e os porões dos velhos cinemas destruindo qualquer vestígio de criatividade dos celulóides, e nem todo surrealismo do mundo poderá nos salvar desta verdade que arde sob este céu onde um dia Lorca foi assassinado por desprezíveis fascistas, será que eles assassinaram todos os poetas? Sentei num café qualquer assistindo o desfile dos travestis, esperando que Almodóvar apareça para reacender as cores e os sentidos e a genialidade desta cidade que já foi um dia.

Wednesday, October 10, 2007


URGÊNCIA


Viver é urgente.
Não temos asas, mas é preciso permitir-se o vôo,
montados sobre o tempo, este sim,
que passa feito um pássaro.
É preciso estar atento, se não, perde-se de vista tão rápido,
é natural, somos todos parte do mesmo organismo, o mesmo ciclo e planos superiores,
alheios que estamos a tudo nos entregamos,
e atiramos o olhar na distância, esta sim,
infinita, intocável.
Até que nossos passos desliguem-se de gravidades
e caminhem sobre as nuvens, que passam
desenhando sonhos. Nuvens são urgentes. Sonhos são pássaros, tão rápidos.
É preciso estar acordado, se não, a vista não alcança a distância,
é natural, somos todos limitados seres humanos,
paralisados ficamos de cansados que estamos,
alheios a velocidade de nossos desejos,
intântaneos são esses, deliciosos de tantas descobertas, tudo o que buscamos,
na paisagem,
que mostra-se feito mágica, cegos não estamos.
E quando tudo acende-se de tanto sol,
o pensamento atira-se no horizonte, e o horizonte é lindo, é aberto,
é perfeito de tantas não certezas, e tudo vem
tão imenso de tantas possibilidades,
que não precisamos esticar um dedo, é só deixar-se ir.
Ir é vital. Imóveis não podemos estar.
Certezas são tristezas.
O horizonte é alcançável.
Nuvens são instântaneas.
O tempo passa montado num pássaro.
É preciso estar atento.

O olhar agarra a distância na velocidade do instante em que a paisagem se abre
no horizonte entre as nuvens que o pássaro atravessa com o tempo montado nas costas.


g-ã

Tuesday, October 09, 2007

VIDA PERFEITA NÃO É MOLEZA NÃO

O verão acabou, e pronto, aqui não tem essa história de verão eterno, acaba e pronto, com data marcada e tudo, não adianta chorar nem lamentar, ou faz as malas e se manda pruma ilha no caribe, ou vai pegar uns resquícios de sol num balneariozinho aqui mesmo pela Grécia ou na Espanha, ou volta pro Rio baby, porque sim se pode falar em verão eterno. Agora frio de rachar, e não adianta se iludir com esse solzinho e sair de camiseta pra escrever nos jardins do castelo, que vai voltar pra casa todo congelado e sentar aqui confortavelmente tomando um cházinho e escrevendo no laptop vendo o céu azul pela janela do apartamento quentinho, calor agora é saudade, é distância, é nostalgia, é passado, e o verão passou tão rápido que quase ninguém viu, aliás o verão não passou, porque o verão não veio, e agora fica todo mundo lamentando que o verão foi fraco, e ninguém presta atenc,ão em como as árvores estão lindas com as folhas todas vermelhas e amarelas, mas talvez seja melhor assim, pelo menos para esses suecos masoquistas e sofredores, como sofre este povo, se o verão tivesse sido bom, sobre o que estaríam eles reclamando agora? Não teria assunto, melhor assim, ficam todos mais animados reclamando da vida pelas esquinas com seus casacos e luvas e gorros e cachecóis que acabaram de sair do ármario, comprados da colec,ão de inverno de não sei quantos anos átras, afinal inverno é tudo igual meu filho, frio e cinza, não importa, mas calma, ainda estamos no outono, que chegou com data marcada como disse, é tempo de reclamar do verão que foi uma merda, e se você não trabalhou feito um condenado como o espertinho do Hank faz a anos, pra economizar um dinheirinho e se mandar quando a coisa esfriar de verdade, vai amargar um inverno destruidor e alguns longos meses sem ver o sol nem o céu, não é mole não, ô povinho sofredor esse, e sofrimento aqui na Suécia é coisa séria, seríssima, com esse verão fuleiro desse ano então, não vai demorar muito pro povo comec,ar a se matar, e alguns deles vão matar a famíla inteira antes de estourar os miolos, é , sofrimento aqui não é de fome nem de falta de emprego, afinal você ganha salário até se estiver desempregado, também não tem violência nem niguém se agredindo por aí, no máximo umas quebradeiras de garrafas pelas ruas depois das duas da manhã quando tudo fecha e você é obrigado a voltar pra casa, afinal qualquer ser humano tem o direito de se revoltar com uma festa que acaba as duas da manhã, aqui também não tem desigualdade social, e qualquer faixineira pode ter sua lancha _que ficou estacionada esse verão_ e qualquer caixa de supermercado pode ter seu MG conversível e sua casa de verão na beira do lago e passar seis meses no Brasil coc,ando o saco, como é o caso do hank, então, porque sofre tanto esse povo meu Deus? Por que o índice de suicídio aumenta a cada ano, se tudo aqui funciona tão perfeitamente? Talvez aqui esteja a chave do mistério, o ser humano não foi feito para ser assim tão perfeito, é preciso permitir-se algumas intransigências e descontroles e loucuras pra que a engrenagem funcione, é preciso algum esforc,o pra que a coisa ande, alguns obstáculos pra que se valorize a conquista. Que merda é essa que eu estou escrevendo? Esforc,o? Obstáculo? Quero mais é catar meus morangos nos lindos campos silvestres de manhãzinha e reclamar das dores nas costas pro meu amor fazer uma massagenzinha gostosa quando eu chegar em casa, quero mais é trabalhar duas vezes por semana no supermercado e ganhar o dobro do que eu ganharia trabalhando o mês inteiro na Sendas no Brasil, mas sem esquecer de me sentir um pouco ridículo com aquele uniforme de mecânico de filme pornô, quero mais é pegar um avião quase de grac,a e passar uns dias batendo perna em Barcelona, mesmo que a coisa parec,a estar mais preta do que no Rio de Janeiro, com todo mundo sendo assaltado em todas as esquinas, viu, vida fácil é duríssima, e com esse verãozinho então. O buraco aqui é mais em cima, é o oco que se produz na mente, o vazio da ausência de sentimentos verdadeiros, aqui o que pega é o tédio, o praguimático, o cálculo, o artificial, o sistemático, é tudo tão friamente calculado, que qualquer desajuste parece o fim do mundo, e dá-lhe gente se jogando dos prédios, e tomando veneno, acendendo o gás, se jogando na frente do metrô, porque frio demais, e eles foram obrigados a ficar trancados dentro de casa com a família que eles odeiam, e agora todos estão olhando torto pra você, porque você não procura emprego desde que você quebrou o dedo a dois anos átras e vive as custas da pensão que o governo paga pra você não fazer nada, oh não, tem alguma coisa errada comigo, vou me matar, pow. A outra quer viajar mas não tem com quem deixar o cachorro que está muito velho, e fazem anos que ela está esperando o cachorro morrer, e agora é ela que quer morrer, pegou um acorda, amarrou no celeiro, era, ficou o cachorro moribundo lambendo os pés dela. O rapaz sensível, consegue se satisfazer no inferninho gay escuro em Amsterdã que ele visita regularmente, e a família tenta jogar qualquer loirinha vagabunda pra cima dele o tempo inteiro, ninguém entende porque ele prefere estar solteiro, e aquela moc,a tão linda e tão perfeita agora está interessadíssima, oh não, se jogou do oitavo andar, rapaz sensível não aguentou o frio. Por vai, eu, também tirei todos os meus acessórios do ármario, depois dessa última caminhada até o castelo de camiseta, tomei meu cházinho quente e vi o pôr-do-sol pela janela aquecido aqui escrevendo e agora vou acender todas as velas e preparar uma comidinha pro meu maridinho que vai chegar cansado e manhoso do trabalho no supermercado, e depois vamos assistir um filminho grudados comendo pipoca debaixo do hedredom, e fazer amor com a lua linda que está nascendo iluminando o jardim, bom, isso seria o ideal aqui nesta perfeita vidinha sueca, mas talvez eu continue aqui sentado sem fazer nada, e o hank chegue estressado e com fome e fique mais irritado ainda quando ver a louc,a toda suja, e talvez esteja passando um filme do Bergman desses bem deprê, e talvez meu querido amor queira dormir sozinho hoje, e eu resolva sair pra caminhar e congelar a alma com essa lua tão perfeita, e talvez eu me jogue nessas águas congeladas e saia nadando pra tentar chegar até o Rio, onde felizmente quase tudo está desordenado e absolutamente ninguém é perfeito, e o sol vai nascer rachando no arpoador de qualquer maneira, e pronto.